Eu vi.Vi ninguém me contou.

Vi com esses olhos que agora pesam.
A fila do osso dobrando a esquina antes do sol nascer.
Gente igual a mim, igual a você.
Vi criança com sacola na mão, esperando sobras de açougue como se fosse presente de Natal.
Vi mães desesperadas disputando osso, carcaça, nervo, cartilagem — qualquer coisa que pareça comida.
E eu me pergunto: como é que a gente chegou aqui?

O trem de Solano ainda passa.
Mas hoje ele não apita. Ele geme. Ele grita:
Tem gente com fome. Tem gente com fome.
Mas quem escuta o invisível?

Eu estive na Amazônia.
E o que eu vi, não esqueço.
Índios pedindo esmola nas calçadas das cidades, nas estradas, Tipo blitz da miséria gritando: “eu estou aqui!” .
Aldeias inteiras com fome nos olhos, nas mãos, no ar — A fome que fede à abandono.
Casebres de palha parecendo favelas esquecidas no mato, sem água, sem comida, nada.
Reduzidos à estatística e à humilhação.
Eu vi, a floresta ainda respira, mas seu povo agoniza.

Em outro, meus olhos atravessam a fé que se arrasta descalça pelas ruas, poeirentas de Canindé.
A cada outubro, eu volto. E o que vejo é sempre o mesmo milagre:
Corpos cansados carregando promessas no lombo.
Mulheres com terços entre os dedos e os joelhos ralados no chão.
Homens que choram calados diante da imagem do São, como quem entrega a alma a um irmão.
Eu vi, a fé é reboco onde o Estado não chegou.
Ali, Deus é chamado para resolver o que os homens abandonaram.
É um povo que se ajoelha por esperança
Ali, cada vela acesa é um grito.
Cada ex-voto pendurado é um pedido de socorro.
É gente apelando ao céu porque a terra os deixou.

Enquanto isso, os ratos de laboratório da elite brasileira — trancados em seus apartamentos de 300 metros quadrados, com piscina, ar-condicionado e câmeras em cada canto — vivem em berços com barra de ouro.
Acham que estão seguros, mas respiram o mesmo ar contaminado pela indiferença.
Veem a miséria da janela e fecham a cortina.
Não é sobre ignorância, é sobre escolha.
Eles se acham intocáveis, mas são cúmplices.
São o motor da máquina que mói gente.

Eu andei , onde os catadores reviram os sacos de lixo com luvas rasgadas e olhar vazio.
Ali, nas calçadas que cercam a fartura, famílias se alimentam do que a elite despreza.
Sobram restos. Faltam direitos.

Não é só fome de comida — é fome de justiça, de dignidade, de paz.
É fome de um país que, onde se vende até a esperança e se terceiriza a dor.
Onde a elite do atraso ainda acha bonito bater no peito e gritar “meritocracia” com a barriga cheia e o cérebro vazio.

Solano gritou. Eu escutei.
Agora eu grito também:
Tem gente com fome. enquanto a miséria for a barbârie é rotina. E tem gente que finge que não vê, tem gente que não vê. Mas os invisiveis estão ai. Eu vi, ninguém me contou.

Tem gente com fome.

Tem gente com fome.

Tem gente com fome.

inspirado por: O “trem sujo da Leopoldina” de Solano Trindade. Mais atual impossível.

Sergio Nobrega

Written by Sérgio Nóbrega

Fotógrafo,editor,diretor de fotografia,Economista,escritor,historiador nas horas vagas,estudante de direito.

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