As Caruaras

Uma História de Maria Rozinda, uma filha do Piauí

Ah, meu filho… sente aqui pertinho que vou te contar uma coisa que só os velhos da minha época lembram. É sobre a fazenda As Caruaras, onde eu nasci, cresci… e vi o mundo mudar. Era ali, nos confins do Maranhão, perto de Brejo, onde o verde do mato se misturava com o vermelho da terra e, depois, com o vermelho do sangue.

Meu avô, Marcolino Francisco Rodrigues, era homem de palavra e braço firme. Minha avó, Maria Rosinda Lemos — da qual eu herdei o nome e, quem sabe, um pouco do espírito — era mulher de coragem. Viviam naquela fazenda simples, mas fértil, com seus filhos, roça, gado e um horizonte de incertezas. O Brasil ainda não era um país de verdade. Era um amontoado de vontades, de homens livres e de senhores, de negros acorrentados e de índios escorraçados. E a guerra… a guerra veio como vento de tempestade.

Meu pai, Contâncio Barcelar, e minha mãe, Marinha Rodrigues Barcelar, ainda eram jovens quando a notícia chegou e ainda não tinha casados. O Piauí estava em chamas. Os portugueses queriam manter o Norte sob seu domínio, e os homens da terra resolveram não permitir. A palavra veio do coronel Simplício Dias da Silva, homem rico e valente. Diziam que ele perdeu tudo, até o sossego, pra garantir a liberdade do povo.

E foi ali que começou o fim da nossa paz.

Vô Marcolino juntou os filhos e netos homens, entre eles meus tios e primos — quase todos Rodrigues — e seguiram pro lado de Campo Maior. A travessia foi dura… seca no caminho, fome nas noites. Levaram o que podiam: foices, facões, armas velhas e o peito aberto. Disseram que iam lutar pela pátria, mas foi a roça que ficou órfã.

Meu pai ainda muito jovem ficou , cuidando da casa, das mulheres, dos velhos e das crianças. Foi ele quem me ensinou, ainda menina, que a terra só escuta quem a trabalha com amor… e dor.

A guerra estourou no dia 13 de março de 1823, e até hoje sinto como se tivesse ouvido o canhão. Foram cinco horas de morte. A gente aqui em Caruaras ouvia histórias trazidas por vaqueiros, por retirantes feridos que fugiam pela mata. Diziam que os portugueses estavam armados até os dentes e que os nossos, descalços, morreram de pé, com a foice na mão e o nome de Deus na boca.

Dos nossos… quase ninguém voltou.

A fazenda ficou entregue às mulheres. Minha avó segurou o choro e arregaçou as mangas. Ela era o pilar. Acordava antes do sol e dormia depois da lua. Não havia tempo para lamentar. O gado precisava pastar, os filhos comer, a terra ser plantada. E eu cresci vendo isso — vendo a dor ser vencida pela persistência.

Na seca de 1824, a fome bateu. Choveu só dois dedos. O milho minguou, o feijão nem nasceu. Foi minha mãe, Marinha, que buscou ajuda em Brejo. Montada em burro, com uma cuia e um rosário no pescoço, foi pedir socorro aos padres. Voltou com farinha e fé. Nunca mais duvidei do milagre das mães.

Minha avó, com aquela serenidade que a gente só encontra em gente calejada, casou com o marido da irmã que morreu de parto. Criou os sobrinhos como se fossem seus. Quando me contava essas histórias, dizia: ‘Minha filha, a vida não espera que a gente esteja pronto pra ser forte.’

E assim foi.

Os filhos dela cresceram. Eu me casei jovem. Mas não foi por amor, foi por dever. Criei 10 sobrinhos/filhos, depois, por vontade do destino, criei também sua mãe, minha neta,quando meu filho foi embora e não voltou,essa foi minha última doce missão.

Hoje, quando olho pra essa bandeira do Piauí com a data do 13 de março estampada, lembro de tudo. Do vô Marcolino, que nunca mais voltou. Do cheiro da terra molhada nas primeiras chuvas depois da seca. Da avó Rosinda, firmando os pés no chão pra não cair. De Simplício Dias, que lutou com o que tinha e, com o que perdeu, nos deixou uma pátria inteira.

A gente viveu com pouco, mas viveu inteira. Porque ali, entre as carnaúbas e os caruarus da nossa fazenda, mesmo quando a guerra levou quase tudo, a gente plantou de novo. E, meu filho… plantar depois da guerra é o ato de coragem que só sertão já viu.”

Hoje quando vejo nos livros de historia ou nos desfiles de 7 de setembro,ou o quadro épico de Pedro Américo, Recordo que no cemitério do Batalhão, os mortos do Jenipapo ainda nos olham em silêncio.
Ali, debaixo da terra quente do sertão, não há telhado que os proteja nem cruz alta que se destaque. Apenas o chão, a memória e a honra.
Eles não morreram com espada dourada na mão nem ouvindo hinos da pátria. Morreram com foice, com enxada, com pedaço de pau — e com a coragem que só o povo pobre conhece.

E é por isso que eu digo, sem medo de errar: a independência do Brasil não nasceu de um grito solitário às margens do Ipiranga. Não, senhor.Ela brotou no Piauí.Ela sangrou no Piauí.

Enquanto em outras partes do país se negociava, aqui se resistia.
Enquanto em salões do Rio de Janeiro se costuravam alianças, aqui se lutava com o próprio corpo.

Foram agricultores, vaqueiros, negros forros, padres, artesãos e filhos de sertanejos que enfrentaram o exército português com o que tinham.
Porque aqui não houve exército formado.
Houve povo.
E o povo, quando levanta a mão, é mais forte do que qualquer tratado.

A Batalha do Jenipapo foi a única do Brasil onde brasileiros realmente enfrentaram tropas portuguesas em combate direto durante a independência.
E perderam, sim. Perderam a batalha.
Mas foi essa derrota de sangue, de corpo no chão, que obrigou os portugueses a recuar.
Foi ela que empurrou a História adiante.
Porque às vezes, perder é o preço de manter-se de pé.

Por isso, quando você ouvir alguém repetir que o Brasil nasceu de um grito — lembre-se de que ele só ecoou tão longe porque o povo do Piauí estava disposto a morrer por ele.

E que, no cemitério do Batalhão, os mortos não têm telhado…
Mas têm nome.
Têm história.
E têm a pátria que ajudaram a construir com a vida.

Esta é uma obra ficcional baseada em fatos reais do Brasil e de minha família.

Sérgio Nóbrega: Fotógrafo, editor, diretor de fotografia, Economista, escritor, historiador nas horas vagas, estudante de direito.

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