Ao ler O Conto da Aia, 1984 e Admirável Mundo Novo, sinto um incômodo profundo. Esses livros, escritos em diferentes períodos, descrevem sociedades distópicas onde o controle sobre as pessoas acontece de formas distintas: pelo medo, pela manipulação da verdade ou pelo prazer artificial. O que mais me assusta, no entanto, é perceber que esses cenários não estão tão distantes da realidade que vivo hoje no Brasil. A polarização extrema e o avanço do extremismo de direita me fazem enxergar, cada vez mais, fragmentos dessas narrativas se tornando reais.

Em O Conto da Aia, vejo a ascensão do fundamentalismo religioso e o desejo de transformar crenças particulares em leis para toda a sociedade. No livro, a República de Gilead elimina os direitos das mulheres em nome de uma suposta moralidade. Quando observo o Brasil atual, percebo discursos que seguem essa mesma lógica, buscando restringir direitos reprodutivos e censurar debates sobre gênero e sexualidade. A mistura entre religião e política, usada para justificar retrocessos sociais, me lembra exatamente o que Atwood previu: um regime onde a fé se torna uma ferramenta de opressão.

Já 1984 me faz pensar na forma como a verdade tem sido manipulada. No livro de Orwell, o Partido reescreve a história constantemente, apagando fatos e criando versões convenientes para o governo. Quando vejo notícias falsas se espalhando, a ciência sendo desacreditada e a história sendo recontada para favorecer certos grupos políticos, percebo como essa distopia se reflete no presente. No Brasil, há uma batalha contra a realidade, onde quem controla a informação tem o poder de definir o que é verdadeiro. Ataques à imprensa, perseguições a jornalistas e a construção de inimigos fictícios – como a ideia de que existe uma ameaça comunista – fazem parte dessa estratégia de controle.

Mas talvez o que mais me angustie seja a semelhança entre Admirável Mundo Novo e o mundo atual. Huxley não imaginou um governo que oprime pelo medo, mas sim uma sociedade que aceita a opressão porque está constantemente distraída. Quando olho ao redor, vejo como o entretenimento superficial, o consumo exagerado e a cultura do prazer imediato funcionam como ferramentas para impedir que as pessoas questionem o que realmente importa. As redes sociais, a busca incessante por curtidas e a obsessão com celebridades criam uma bolha onde muitos preferem se refugiar, em vez de encarar as questões políticas e sociais que definem o futuro do país.
O que mais me inquieta ao refletir sobre essas distopias é perceber que, ao contrário do que muitos imaginam, o controle totalitário não acontece de um dia para o outro. Ele se instala aos poucos, em pequenas concessões que parecem inofensivas no início. A história já nos mostrou que regimes autoritários não surgem apenas pela força; muitas vezes, eles nascem da passividade de uma sociedade que se acostuma com abusos diários até que não reste mais espaço para questionamento.

E é exatamente isso que vejo ao meu redor. A censura não precisa ser explícita se as pessoas aprenderam a calar a si mesmas por medo de represálias. A opressão não precisa vir com tanques nas ruas quando o medo de ser cancelado ou perseguido digitalmente já faz com que muitos evitem se posicionar. A manipulação da verdade não precisa de um “Ministério da Verdade” como em 1984, se algoritmos e redes sociais já moldam nossa percepção da realidade, nos entregando apenas aquilo que reforça nossas crenças pré-existentes.
O mais assustador é perceber como a fusão dessas três distopias acontece diante dos meus olhos. O extremismo religioso de O Conto da Aia avança silenciosamente, legislando sobre corpos e comportamentos. A manipulação da verdade de 1984 se fortalece com a ascensão das fake news e da descrença na ciência. E a distração de Admirável Mundo Novo impede que uma parte significativa da sociedade perceba o que está acontecendo.

Não se trata mais de perguntar se estamos caminhando para uma distopia, mas qual delas estamos construindo. O pior cenário, talvez, seja justamente uma fusão dessas três visões – uma sociedade onde a religião justifica a opressão, a verdade é distorcida ao bel-prazer do poder, e a população, entorpecida por entretenimento barato, sequer percebe que sua liberdade está desaparecendo.
Diante disso, me pergunto: como resistir? Como impedir que a ficção se transforme completamente em realidade? A resposta parece óbvia, mas nem sempre é fácil de colocar em prática: pensamento crítico. Não aceitar passivamente o que me dizem, questionar, buscar fontes diversas e, principalmente, não ceder à indiferença. A luta contra qualquer tipo de opressão começa pela recusa em ser manipulado.
Se há algo que essas distopias ensinam, é que o autoritarismo se alimenta da apatia. E enquanto eu tiver voz, enquanto puder enxergar os padrões que tentam se repetir, me recuso a ser mais um na multidão de silenciados. Porque se há algo que a história já nos mostrou é que toda distopia começa com um “não é tão grave assim”. Quando percebemos a gravidade, pode ser tarde demais para voltar atrás.