O contrato social

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Acordei com um aperto no peito, uma sensação de opressão que não vinha de fora, mas de dentro. É como se, de repente, a minha fé já não me pertencesse. Não porque eu tivesse mudado de ideia, nem por uma revelação divina. A minha forma de adorar a Deus, de me conectar com o sagrado, perdeu-se porque a maioria decidiu que sim. Sem direito a questionar, sem explicação e sem a possibilidade de continuar a seguir o que o meu coração me diz. Parece um abuso, certo? Um atentado à liberdade mais íntima de uma pessoa. Mas é exatamente para isso que temos limites. É para isso que existem as leis, as constituições, para nos relembrar que há regras, mesmo , e sobretudo , quando a maioria deseja ignorá-las. A história nos mostra exemplos terríveis disso. Em lugares onde a vontade da maioria se torna a única lei, a forma de adorar de um grupo é imposta a todos os outros. As escolhas individuais se dissolvem sob a pressão de uma coletividade que se julga dona da verdade.

E é aí que entra o “árbitro” da nossa sociedade. Não para contrariar o desejo do povo por capricho, mas para fazer o que lhe compete: aplicar as regras do jogo, mesmo quando a maioria não gosta delas. O árbitro não protege um grupo político, não é simpático com a opinião popular do momento. Ele protege algo muito mais importante, os limites da liberdade. O voto, sim, é fundamental. Ele legitima, ele dá voz. Mas não apaga as regras do jogo. Quando a maioria tenta usar a sua força para impor uma única forma de crer, não está a defender a democracia. Está a usá-la como uma máscara, ou pior, como uma arma para anular o direito mais básico de cada indivíduo: o de ter a sua própria fé. Os populismos, de todos os lados, aprenderam a se vestir com a pele da democracia. Não prometem acabar com ela; prometem devolvê-la ao povo. Mas, na prática, agarram-se à força do número, à maioria, e tentam levar o resto a reboque , o direito de cada um, a diversidade, as crenças que não se encaixam no molde. Porque o voto protege maiorias, mas não protege direitos. E os direitos, o de ter a sua própria casa, o de ter a sua família, ou de escolher a sua forma de adorar, esses vivem dos limites que desenhamos antes da euforia. Esse é o nosso contrato social.

Pensando no árbitro, a figura central de qualquer jogo sério. Suas decisões não são baseadas em popularidade ou no fervor da torcida. Ele não privilegia a equipe que está ganhando, nem ignora uma falta só porque o placar está a seu favor. O árbitro aplica as regras, a essência do jogo, que foram estabelecidas muito antes do primeiro chute. A Constituição é o nosso árbitro. Ela é a base de um contrato social que precede a euforia de uma vitória eleitoral. Ela foi escrita para proteger a todos, não só os que detêm o poder do voto. A nossa Constituição é um conjunto de regras que não se negocia com os adeptos, nem se suspende só porque uma equipe está a ganhar. Ela é o que garante que o jogo não se transforme em uma luta caótica, onde o mais forte impõe a sua vontade e os mais fracos são esmagados

O Tribunal Constitucional, como um árbitro, tem a tarefa de aplicar essas regras. Ele defende o jogo, o Estado de Direito, mesmo quando isso é impopular. Porque o dia em que aceitarmos jogar sem árbitro será o dia em que o jogo acaba para todos. O que parece uma vitória hoje, quando se impõe a vontade da maioria sem limites, pode se transformar em um pesadelo amanhã, quando já não houver regras para proteger ninguém, nem mesmo os que se julgam vencedores. E nesse dia, todos nós teremos perdido.

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