O silêncio entre nós

Outro dia, sentado à mesa do café da manhã, me dei conta de algo que me atravessou feito uma flecha: minha filha estava tentando me contar algo, mas eu não ouvi. Estava ali, de corpo presente, mas com a cabeça dentro de um vídeo curto no Instagram. Não me orgulho disso, mas reconheço que esse momento comum, aparentemente inofensivo , me fez parar para pensar. Quando foi que começamos a trocar os olhos nos olhos pela rolagem infinita do feed? É estranho perceber que a gente deixou de prestar atenção. De olhar nos olhos com calma. De escutar, de verdade, o que o outro está dizendo. Em casa, nas ruas, nas rodas de amigos, estamos todos com um celular entre nós. A tecnologia, que veio para nos conectar, criou um espaço invisível entre as pessoas mais próximas.

Talvez a resposta não seja tão simples , mas uma coisa é certa: há um custo emocional, cognitivo e relacional sendo pago todos os dias, muitas vezes sem que a gente perceba.O neurocientista francês Jean-Philippe Lachaux, autor de “O Cérebro Atento”, explica que a atenção é um recurso limitado. E que, ao contrário do que muitos pensam, nós não “damos” atenção , ela nos é “tomada”. Isso significa que o ambiente disputa constantemente nossa concentração. E o vencedor, quase sempre, é o que grita mais alto ou brilha mais na tela. Tristan Harris, ex-designer do Google e fundador do Center for Humane Technology, chama essa disputa de “economia da atenção”. Em entrevista à revista The Atlantic, ele disse algo inquietante: “Nossos cérebros foram hackeados. Os algoritmos sabem como capturar nossas emoções e nos manter presos a um ciclo que não fomos nós que escolhemos.” Essa distração crônica tem um nome: déficit de atenção induzido por tecnologia. Um estudo publicado na revista Nature Communications (2021) analisou bilhões de dados de comportamento digital e concluiu que os conteúdos estão ficando cada vez mais curtos porque a nossa atenção coletiva também está encolhendo. Como manter um diálogo profundo com alguém que vive em pílulas de 15 segundos?

O mais preocupante não é o uso da tecnologia em si, mas o que ela substitui. Deixamos de brincar com nossos filhos para responder uma notificação. Deixamos de ouvir o parceiro ou a parceira porque um vídeo engraçado apareceu no feed. E, aos poucos, vamos virando meros espectadores da vida dos outros, enquanto a nossa própria vida passa despercebida, sem registro emocional. Nicholas Carr, no livro “A Geração Superficial”, afirma que o excesso de estímulo digital enfraquece nossa capacidade de reflexão profunda, empatia e memória de longo prazo. Em outras palavras: estamos perdendo aquilo que nos torna humanos. E eu me pergunto: como ficam as relações afetivas nesse contexto? Como manter viva a escuta, a presença, o toque, se nossa atenção está sequestrada por algoritmos invisíveis que se alimentam justamente da nossa ausência?

Não sou contra a tecnologia , aliás, eu vivo dela. Mas venho tentando reconquistar o direito à atenção plena. Tenho desligado as notificações. Tenho deixado o celular em outra sala quando estou com minha filha. Tenho voltado a ouvir , e não só escutar. Pequenas decisões que, aos poucos, devolvem sentido às conversas, às refeições, aos silêncios compartilhados. A presença não se impõe. Ela se constrói. E talvez, num tempo em que tudo nos empurra para fora de nós mesmos, o maior gesto de resistência seja simplesmente prestar atenção. Naquilo que importa. Em quem está perto. Em quem nos ama.

Porque, no fim, a culpa talvez não seja do feed ,mas da gente, que ainda pode escolher como vive. E pode, com coragem, desligar a tela e voltar a olhar nos olhos.


Fontes citadas no artigo:

Lachaux, Jean-Philippe. O Cérebro Atento (Editora Vozes, 2014).

Harris, Tristan – Center for Humane Technology: https://www.humanetech.com

Nature Communications, 2021 – “Accelerating dynamics of collective attention.”

Carr, Nicholas. A Geração Superficial – O que a internet está fazendo com nossos cérebros (Agir, 2011).

The Atlantic – “How Tech Hijacks Your Brain” (2016).

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