Quem decide quem pode sonhar ?

Ao ler Quarto de Despejo, o livro mostra que a pobreza extrema não é fruto de preguiça, falha moral ou falta de esforço individual, mas de uma estrutura social desigual, que exclui sistematicamente uma parte da população. A pergunta que me atravessa não é apenas sobre a miséria narrada por Carolina Maria de Jesus, mas sobre quem escolhe mantê-la viva. Por que políticos , especialmente os de direita ,negam sistematicamente projetos que reduzem direitos sociais? Por que criminalizam a pobreza, como se ela fosse um desvio moral, e não o resultado direto de uma estrutura desigual? Por que culturalizam a miséria, tratando-a como destino, hábito ou falha individual?

Carolina desmonta essas mentiras com a própria vida. Ela trabalha, pensa, escreve, analisa a política e ainda assim passa fome. O livro mostra, sem maquiagem, que a pobreza não nasce da falta de esforço, mas da falta de acesso. Quando o Estado se ausenta, quando políticas públicas são desmontadas em nome da “responsabilidade fiscal” ou do “mérito”, o que se faz, na prática, é empurrar pessoas para fora da cidadania. A favela vira o “quarto de despejo” da sociedade: um lugar onde se joga o que não se quer ver.

O que mais me incomoda é perceber que muitos que chegam ao topo , políticos, empresários, formadores de opinião, rompem qualquer vínculo com o chão de onde vieram. Passam a desprezar não só os pobres, mas também qualquer sinal de avanço desses pobres. O incômodo não é com a miséria; é com a ascensão. O pobre pode sofrer, desde que não ultrapasse limites simbólicos. Pode passar fome, mas não pode viajar. Pode trabalhar muito, mas não pode sonhar alto. Quando um ministro critica o pobre que vai à Disney, o que está sendo defendido não é a economia do país, mas a manutenção de um lugar social: cada um no seu quadrado.

Esse discurso encontra eco no que hoje se chama de “pobre de direita”. Uma figura comum no Brasil atual: alguém que sofre os efeitos da desigualdade, mas defende quem a produz. É o sujeito que internaliza o desprezo das elites e passa a reproduzi-lo contra os seus iguais. Acredita que direitos são privilégios, que políticas sociais são esmolas, que o sucesso alheio é ameaça. Como já foi amplamente discutido por pensadores como Jessé Souza, trata-se de uma violência simbólica profunda: o dominado passa a pensar com a cabeça do dominador.

Quarto de Despejo escancara que isso não é ignorância, é projeto. A miséria não é acidente; é consequência. Criminalizar a pobreza, negar direitos e ridicularizar a ascensão social são estratégias para manter intacta uma ordem profundamente desigual. Carolina escreve para não enlouquecer, mas também para denunciar. Sua lucidez incomoda porque revela aquilo que muitos preferem negar: a desigualdade no Brasil é sustentada diariamente por escolhas políticas e por uma cultura de desprezo aos pobres.

Minha crítica, portanto, não é apenas aos políticos de direita, mas a toda lógica que naturaliza a exclusão e transforma a dignidade em privilégio. Enquanto a sociedade continuar tratando o pobre como problema, e não a desigualdade como crime, continuaremos empurrando milhões para o quarto de despejo da história.

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