
Desde os anos 1930 e 1940, membros da família Gracie — em especial Hélio Gracie — já compreendiam o poder da imagem como meio de construir e projetar autoridade. As fotografias de combates, desafios públicos e demonstrações técnicas não apenas registravam acontecimentos, mas criaram uma narrativa visual da superioridade técnica do Gracie Jiu-Jitsu. Esses registros serviram como provas simbólicas da eficácia do estilo, especialmente em comparação com outras artes marciais da época, como o boxe, o judô ou o capoeira.
Carlos e Hélio Gracie foram mestres na arte da promoção pessoal e do marketing visual. Encenavam desafios com outros lutadores, promoviam eventos e se faziam fotografar em posições de domínio ou vitória. A famosa luta entre Hélio Gracie e Waldemar Santana, por exemplo, gerou uma série de imagens reproduzidas em jornais, revistas e panfletos — elementos que solidificaram a imagem do Gracie Jiu-Jitsu como uma arte invencível. Essa estratégia criou não apenas visibilidade, mas também mitologia em torno da família.

Com a mudança de Rorion Gracie para os Estados Unidos, nos anos 1980, a família encontrou no vídeo um novo aliado. Rorion gravava aulas, desafios e combates reais, transformando fitas VHS em ferramentas de ensino, marketing e doutrinação. Essas fitas circularam amplamente entre praticantes de artes marciais e ajudaram a introduzir o estilo Gracie no cenário internacional. A culminação dessa estratégia audiovisual foi a criação do Ultimate Fighting Championship (UFC) em 1993, idealizado por Rorion. O evento foi concebido como uma vitrine global para demonstrar, de forma crua e direta, a superioridade do Jiu-Jitsu Gracie em combates sem regras.
A família Gracie também entendeu que a imagem poderia ser uma ferramenta de padronização doutrinária. A documentação meticulosa de combates, seminários e técnicas resultou em acervos visuais que continuam sendo utilizados para a formação de novos praticantes. A plataforma Gracie University, por exemplo, é baseada majoritariamente em vídeos, facilitando o ensino a distância e mantendo a fidelidade ao sistema original da família. Isso revela uma visão estratégica não apenas de marketing, mas de perpetuação do legado.
Ao longo das décadas, a imagem dos Gracie foi utilizada também como construção simbólica de uma linhagem quase mítica. Fotografias em preto e branco dos anos 1940, vídeos granulosos dos primeiros UFCs e gravações caseiras de desafios em academias formam um imaginário estético que reforça a identidade visual da família. Não se trata apenas de registrar lutas, mas de criar um acervo histórico e cultural, onde cada imagem carrega o peso de uma narrativa.
A história dos Gracie e o método de técnicos como Bernardinho (que também utiliza intensamente vídeos e imagens para análise de desempenho) revelam uma verdade essencial: quem domina a narrativa visual, domina a percepção pública. Ambos compreendem que a imagem não apenas documenta, mas cria realidade. Seja no tatame ou na quadra, o controle sobre o que se vê — e como se interpreta — é uma forma sofisticada de poder.
A imagem, quando usada com estratégia, é capaz de ensinar, persuadir, construir reputação, transmitir doutrina e gerar autoridade. Na trajetória da família Gracie, ela foi arma, argumento e herança. Em um mundo onde tudo pode ser filmado ou fotografado, não basta aparecer: é preciso comandar o enquadramento, escolher o momento, controlar a mensagem.
Apesar do enorme poder da imagem como ferramenta de transformação, o cenário contemporâneo apresenta novos riscos e dilemas. A hipervisibilidade promovida pelas redes sociais transformou o modo como as imagens são consumidas e interpretadas. Plataformas como Instagram, TikTok e X (antigo Twitter) criaram um ambiente onde qualquer imagem pode viralizar — mas também destruir reputações em segundos.
Educadores, atletas, treinadores e artistas muitas vezes evitam compartilhar imagens legítimas de suas práticas, com receio de interpretações descontextualizadas, manipulações maliciosas ou julgamentos apressados. Essa lógica do tribunal virtual, muitas vezes alimentada por recortes, memes e cancelamentos, enfraquece a imagem como mediadora do bem.
Há um paradoxo: nunca houve tantas imagens circulando, mas nunca foi tão difícil controlar sua recepção. O excesso de exposição e a cultura do julgamento digital podem sufocar a dimensão pedagógica, política e ética da imagem. Assim, corremos o risco de perder a potência transformadora que os Gracie souberam mobilizar no século XX, justamente quando mais precisamos dela.
Referências Bibliográficas e Complementares
- Thompson, John B. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. Petrópolis: Vozes, 1998.
- Han, Byung-Chul. A Sociedade da Transparência. Petrópolis: Vozes, 2017.
- Sibilia, Paula. O Show do Eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
- El País Brasil. As redes sociais tornaram impossível o esquecimento. Disponível em: https://brasil.elpais.com. Acesso em: maio de 2025.
- Kanashiro, Marta. A circulação da imagem no ambiente digital: entre visibilidade e vigilância. In: Comunicação & Sociedade, 2021.
- Agradecimento a Royler Gracie que cedeu momentos valiosos ,e que ajudaram na formatação desse texto