O Brasil assiste a um momento constitucional de enorme tensão, após a condenação do ex-presidente Jair Bolsonaro e de diversos aliados por tentativa de golpe de Estado e crimes contra o Estado Democrático de Direito, com penas severas; no caso de Bolsonaro, mais de 27 anos de prisão pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Setores do Congresso Nacional passaram a articular medidas legislativas para reduzir ou mesmo anular os efeitos dessas condenações.
Originalmente, a via aberta por esses parlamentares foi a tentativa explícita de anistia política aos envolvidos, inclusive a Bolsonaro, algo que juristas e analistas consideram praticamente nulo do ponto de vista jurídico; porque seria uma afronta à própria Constituição e ao papel do STF em resguardar a ordem democrática.
Diante da resistência, inclusive de setores do Judiciário, surgiu então uma estratégia legislativa alternativa; propor alterações no cálculo de penas e na definição de tipos penais, num projeto que ficou conhecido como “dosimetria da pena”. Na prática, essa “dosimetria legislativa” busca reduzir ou suprimir a gravidade de determinados crimes, recalculando penas para que aqueles já condenados cumpram pouco tempo de prisão ou eventualmente saiam livres mais cedo.
O Legislativo não pode, sob pretexto de “correção legislativa”, revogar na prática decisões judiciais ou contornar julgados do STF.
Quando o Congresso tenta, por meio de engenharia legislativa, diminuir penas, retirar tipos penais ou promover efeitos equivalentes à anistia, está, na prática, buscando contornar a vontade constitucional e o papel do Judiciário. Isso se configura, ao menos do ponto de vista jurídico, como uma usurpação de competências e uma tentativa de fraude constitucional.
Por que isso é um perigo à República
1. Violação da separação dos Poderes: a Constituição não permite que o Congresso, mediante “dosimetria”, reverta ou enfraqueça a aplicação das leis penais no caso concreto, especialmente quando essas leis já foram interpretadas e aplicadas pelo STF.
2. Fraude ao princípio da legalidade, modificar tipos penais e suas penas para beneficiar determinadas pessoas condenadas cria um precedente grave ;passa a ideia de que quem tem poder político pode ser salvo por truques legislativos.
3. Desvalorização da Justiça e da democracia: após um julgamento histórico que reafirmou a condenação dos envolvidos em atos golpistas , crimes que atentaram diretamente contra o Estado Democrático de Direito, reduzir penas por meio de manobras legislativas enfraquece a resposta do Estado de Direito àqueles que violaram seus princípios fundamentais.
O STF tem um papel constitucional claro: guardar a Constituição (art. 102) e assegurar que nenhum poder ultrapasse seus limites. Quando o Congresso tenta criar mecanismos que, na prática, sirvam como uma anistia encoberta ou como redução de pena seletiva para condenados por atentados à democracia, o STF deve atuar com rigor para impedir esse tipo de distorção.
Embora o Legislativo tenha competência para legislar sobre política criminal em geral, ele não pode legislar para beneficiar um grupo específico nem para contornar o resultado de um processo judicial legítimo por meio de mudanças em dispositivos penais ou regras de dosimetria. Qualquer tentativa de “anistia mascarada” afronta diretamente os princípios constitucionais de igualdade, legalidade e separação dos Poderes.
Estelionato puro e simples
A tentativa de usar a dosimetria da pena como substituto de anistia, um verdadeiro estelionato legislativo, praticado às claras, revela não só uma esperteza institucional, mas um ataque consciente e calculado à ordem constitucional. É preciso dizer sem rodeios; manipular a lei para livrar criminosos é, em si, uma conduta criminosa. Quando parlamentares usam o cargo para criar atalhos ilegítimos com o objetivo de libertar quem atentou contra o Estado Democrático de Direito, deixam de atuar como legisladores e passam a agir como cúmplices. Não são defensores da legalidade, mas infratores travestidos de representantes do povo, usando o Parlamento como escudo para proteger aliados condenados. Esse tipo de estelionato legislativo corrói a República por dentro, normaliza o abuso de poder e transforma a lei em ferramenta de salvação para criminosos específicos.
Cabe à sociedade reconhecer que quem tenta libertar criminosos por meios ilícitos se coloca ao lado deles , e essa consciência precisa ser transformada em ação. O combate a esse estelionato legislativo não se faz apenas com indignação, mas com participação política efetiva. A arma mais poderosa do cidadão contra parlamentares que distorcem a lei para proteger criminosos é o voto. É no pleito democrático que se expulsa do Parlamento aqueles que traem a Constituição, que atacam o Estado de Direito.
Protestar, ir pra rua, é o início. É a voz do povo. É Atenas renascendo. E a eleição está logo aí, em 26. Não vamos desperdiçar a chance histórica de usar o voto como julgamento público contra quem traiu a Constituição, o Brasil e sua população. Que cada urna seja um recado alto e claro: o Brasil não será governado por quem tenta dobrar a lei, proteger criminosos e transformar o Parlamento em abrigo de cúmplices.