Enquadrar é arrumar a …

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Fotografar, pra mim, é como entrar em casa depois de um dia longo e encontrar tudo fora do lugar. A toalha jogada no sofá, os sapatos esquecidos no canto, a janela entreaberta deixando a luz invadir sem pedir licença. A fotografia começa exatamente aí, nesse impulso íntimo e silencioso de querer organizar o espaço, de dar sentido ao que está disperso. Enquadrar é arrumar a casa.

E, mais do que isso, enquadrar é também arrumar a cabeça , é o gesto de olhar pro mundo e tentar organizá-lo de um jeito que a minha mente consiga entender. É como se, diante do caos que me atravessa por dentro e por fora, eu fosse colocando cada elemento no seu lugar, não só pra mim, mas também para que os outros pudessem ver como eu vejo, sentir como eu sinto. É uma forma de dizer, “Olha, é assim que eu consigo dar sentido a tudo isso. ”Quando coloco a câmera na mão, é como se eu dissesse a mim mesmo: hoje eu vou botar cada coisa no seu canto. Não porque exista um canto certo, universal, definitivo. Mas porque existe um canto que fala de mim, do que eu sinto, do que eu quero mostrar. O quadro fotográfico é o meu quarto reorganizado. Às vezes, é só uma fresta de luz entrando, um olhar atravessando a janela, um objeto esquecido que, sob nova ordem, ganha poesia. Outras vezes, é a cidade da minha infância, a esquina onde tudo começou, mas vista de um jeito que finalmente faz sentido.

Muitas vezes, escolhi uma lente aberta — 18mm, 20mm, 24mm — e me aproximei. Me aproximei de pessoas, de situações, de silêncios. Não porque o enquadramento exigisse, mas porque eu precisava sentir o cheiro da cena. O que eu via de longe não bastava pra me atravessar por dentro. Então eu ia perto. Às vezes tão perto que quase tocava. E os colegas não entendiam, julgavam. Mas o que eles não viam é que o que a gente enxerga fora é só o reflexo do que carrega dentro.Incrível como tudo isso mudou com o tempo. A cada dia em que olho o mundo, percebo que minha forma de ver uma cena, de sentir um instante, se transformando, de longe já sinto o cheiro. Minha compreensão se alarga, se desloca, ganha outras camadas. Mas, ao mesmo tempo, algo em mim permanece, raízes que não se perdem, apenas se aprofundam. Cada nova imagem que componho carrega esse equilíbrio: o olhar que muda e o chão que sustenta. Porque ver é também acumular o tempo dentro de si, e fotografar, talvez, seja justamente isso: registrar o instante com os olhos do presente e a alma atravessada por tudo o que me trouxe até aqui.

Eu buscava não apenas a imagem, mas o cheiro, a textura, a respiração da cena. Eu queria que, ao verem minha foto, as pessoas quase sentissem o que eu senti. Porque, pra mim, fotografar é isso: tentar tornar visível o invisível que vibra em mim diante do outro.Fotografar, no fim das contas, é compor com o caos. É alinhar o desalinho e dar forma ao que, antes, era só desordem emocional e visual. Cada clique é uma tentativa de dizer: “É assim que eu vejo. É assim que eu sinto.” E, no fundo, é como deixar a casa pronta pra receber alguém. O outro. O espectador. Que vai entrar, olhar em volta e, talvez, por um instante breve e silencioso, entender o que se passa dentro de mim.

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