Um contraste entre dois mundos: o da psicologia científica e o da retórica ideológica
Se fosse possível colocar Leon Festinger e Olavo de Carvalho frente a frente, não seria um debate entre um psicólogo e um filósofo, mas entre o homem que explicou o mecanismo da crença e o homem que aprendeu a operá-lo.
Festinger observou a mente humana no momento em que ela se vê contrariada pela realidade; Olavo, ao contrário, construiu um sistema para protegê-la desse confronto. Um estudou a dissonância cognitiva, o outro produziu um discurso capaz de anular o desconforto da dúvida.
De um lado, Festinger dizia: o ser humano não suporta contradições, e quando as vive, faz de tudo para restabelecer a coerência, mesmo que precise distorcer os fatos.
Do outro, Olavo respondia, em sua prática discursiva: “a coerência está comigo; o inimigo é quem pensa diferente.”
Um descreveu o processo, o outro o dramatizou.
E assim, entre o laboratório e o púlpito, nasceu uma psicologia da fé ideológica.
Se eu quisesse construir um ser humano a partir desse encontro , um híbrido de Festinger e Olavo ; ele seria alguém em busca desesperada de coerência, mas alimentado por certezas dogmáticas.
Seria o cidadão moderno, dividido entre o desejo de entender o mundo e a necessidade de pertencer a um grupo que o simplifique.
Foi dessa junção que nasceram os três personagens dessa pequena fábula contemporânea:
- Gustavo, o médico bem-sucedido que reescreve suas convicções para justificar sua ascensão;
- Rafaela, a psicóloga que transforma o diálogo em doutrina e o pensamento em território de poder;
- Samuel, o evangélico que encontra, nas palavras de seus ídolos, o alívio para o medo de pensar por conta própria.



Cada um deles é um espelho daquilo que Festinger explicou e Olavo intensificou:
a luta pela coerência interna em um mundo de contradições.
São personagens que, sem perceber, tornaram-se prisioneiros daquilo que mais buscavam , a sensação de estar certos.
Este ensaio é, portanto, menos sobre eles do que sobre nós: sobre o modo como trocamos o pensamento pela crença, a dúvida pela fé ideológica, a dissonância pela paz enganosa das certezas.
Havia um homem chamado Gustavo, médico de sucesso, dono de clínicas e de uma retórica firme. Nascido em uma família progressista, cresceu ouvindo discussões sobre justiça social, direitos humanos e igualdade. Mas com o tempo , e com a prosperidade que o dinheiro trouxe , algo dentro dele começou a se deslocar. Não foi de uma hora para outra; foi um movimento silencioso, quase imperceptível, como quem muda o eixo do corpo sem perceber.
Gustavo começou a sentir um desconforto com o discurso que antes o movia. As críticas ao capitalismo lhe pareciam, agora, uma afronta àquilo que ele havia conquistado com o próprio esforço. A ideia de redistribuição, que outrora lhe parecia nobre, passou a soar como ameaça. A dissonância cognitiva se instalou: ele ainda se via como “um homem do bem”, mas já se irritava com a pobreza exposta nas ruas e com a crítica social que o lembrava de onde viera.
Para aliviar essa tensão, fez o que Festinger descreve: reorganizou suas crenças para reduzir o desconforto. Passou a dizer que o problema do Brasil não era a desigualdade, mas a “falta de mérito”. Leu Olavo de Carvalho como quem procura uma âncora ideológica, e ali encontrou uma explicação que encaixava como uma luva: se o mundo está decadente, é porque o inimigo é o “comunismo”, o “globalismo”, a “esquerda”. A dissonância virou convicção, e a convicção virou discurso.
Gustavo, agora, sentia-se coerente. Não com a realidade , mas consigo mesmo.
No mesmo condomínio vivia Rafaela, uma psicóloga de verbo fácil e olhar certeiro. Era uma mulher que sabia convencer, que adorava o poder do argumento e a influência que exercia sobre os vizinhos. Para ela, pensar diferente era sinônimo de estar “desinformado”.
Quando alguém discordava, ela interpretava como resistência à verdade , a sua verdade.
Festinger explicaria que Rafaela vivia uma dissonância social: para manter a imagem de pessoa racional e sábia, ela precisava acreditar que todos os que discordavam dela eram irracionais. O outro não era uma possibilidade de reflexão, mas um obstáculo à sua coerência interna. Assim, moldava o mundo à sua narrativa para não precisar questionar a si mesma.
E quanto mais convencida ela se mostrava, mais admiradores atraía , pessoas que, inseguras ou cansadas de pensar por conta própria, encontravam conforto na firmeza alheia. A influência de Rafaela era uma forma de redução coletiva de dissonância: estar de acordo com ela era mais fácil do que enfrentar a angústia da dúvida.
O terceiro personagem era Samuel, um pequeno empresário evangélico, homem simples e de fé inabalável. Samuel não lia muito, mas assistia a todos os vídeos certos, ouvia os pastores certos, compartilhava as mensagens certas. Ele não criava argumentos: repetia-os.
Não por burrice , mas por necessidade de pertencimento.
A comparação social, segundo Festinger, é o modo como nos situamos no mundo.Samuel precisava estar em sintonia com o grupo para se sentir íntegro. O grupo oferecia respostas claras: havia o bem e o mal, Deus e o diabo, patriotas e comunistas. Era um mundo sem contradição, e essa pureza simbólica o libertava da dor de pensar.
Ele também lia Olavo, mas não por interesse filosófico — lia como quem procura munição.
As palavras do escritor funcionavam como prova de que ele estava do lado certo.
Era, no fundo, uma forma de se proteger da dissonância: acreditar que o mal estava sempre no outro.
Esses três personagens : Gustavo, Rafaela e Samuel — formavam, sem saber, um triângulo perfeito da mente dissonante.
Cada um, à sua maneira, buscava harmonia interna num mundo de contradições.
Todos, em algum momento, sentiram o incômodo do conflito entre o que aprenderam e o que se tornaram.
E todos encontraram alívio não na reflexão, mas na ideologia.
A ideologia, afinal, é o remédio psicológico mais eficaz contra a dissonância cognitiva:
ela simplifica o complexo, moraliza o ambíguo e transforma a dúvida em certeza.
Gustavo justificava seu sucesso; Rafaela justificava sua autoridade; Samuel justificava sua fé.
Cada um, à sua maneira, recobria o medo com coerência.
E assim, dentro do mesmo condomínio , ou do mesmo país , conviviam três pessoas que acreditavam viver na verdade, mas que, na verdade, apenas viviam em paz com suas próprias contradições.
OBS:Os três personagens aqui apresentados são construções simbólicas — mas talvez nem tanto: projeções do meu inconsciente, alimentadas pelas leituras e pelas observações que a vida cotidiana me oferece.



