Eu, vivendo a sociedade do Espetáculo uma decapitação visível da verdade.

Ao reler A Sociedade do Espetáculo de Guy Debord, é impossível não fazer um paralelo direto entre a teoria proposta por ele nos anos 1960 e o estado atual da política brasileira. O que Debord enxergava como um avanço do espetáculo sobre a realidade se concretizou de forma brutal, principalmente dentro das câmaras legislativas — sejam elas estaduais ou federais. Lá, mais do que nunca, o espetáculo é o fim em si.

Vivemos hoje sob uma avalanche constante de imagens, falas, cortes de vídeo e postagens calculadas que não buscam informar, tampouco transformar. Elas existem para performar. O parlamentar, antes figura de articulação política e representação de interesses populares, tornou-se personagem de um teatro digital onde vale mais a estética da denúncia do que a profundidade do debate.

Nas câmaras, vemos diariamente discursos inflamados, carregados de dados distorcidos ou simplesmente inventados, usados não como ferramentas para a verdade, mas como armas simbólicas de guerra política. As sessões são menos espaços de deliberação e mais palcos de transmissão ao vivo, projetadas para viralizar em redes sociais. Deputados constroem suas personas não com base em projetos, mas com cortes bem editados de indignação — normalmente falsa, mas eficaz.

É exatamente esse o diagnóstico que Debord anteviu: um mundo onde a realidade é eclipsada por sua representação, onde a experiência direta é substituída por imagens que simulam autenticidade. No Brasil, essa simulação atinge o seu ápice na política-espetáculo — um campo onde o que importa não é o que se faz, mas o que parece que se fez. E é nessa lógica que a verdade cede espaço ao marketing, e o interesse público é engolido pelo interesse em engajamento.

Essa alienação — outro ponto central em Debord — não é acidental. Ela é produzida e retroalimentada. Deputados e influenciadores políticos contam com um público já condicionado ao espetáculo, à indignação fácil, à lacração ou ao vitimismo performático. E, nesse ciclo, deixamos de ver o que realmente importa: os votos silenciosos que destroem direitos, as manobras regimentais que paralisam investigações, os orçamentos secretos que se escondem por trás de uma fala ensaiada contra “o sistema”.

As mídias sociais, nesse cenário, são apenas a extensão natural do espetáculo. A cada vídeo indignado, a cada postagem com trechos recortados de falas alheias, o que se constrói não é um debate, mas um culto à performance. O capital político não se mede mais pela transformação da realidade, mas pela quantidade de compartilhamentos.

Debord dizia que no espetáculo, o que era diretamente vivido se torna uma representação. Hoje, o que é governado se transforma em um story. O que é votado, vira um meme. O que é denunciado, muitas vezes, é ficção. E a verdade? Essa é um detalhe incômodo, que pode ser ignorado se não gerar engajamento.

O mais perigoso é que essa lógica não se restringe aos fanáticos ou extremistas. Ela contamina também os setores que deveriam resistir a essa farsa. Mesmo figuras públicas bem-intencionadas acabam reféns da necessidade de parecer algo, de performar algo, para não desaparecer no mar do algoritmo. Estamos todos, em maior ou menor grau, presos ao espetáculo — como protagonistas ou plateia, como cúmplices ou como críticos.

Diante disso, talvez a pergunta mais urgente seja: como escapamos? Como quebrar esse ciclo de imagens que nos desumanizam, que impedem a experiência real da política, do diálogo, da transformação?

Apesar de ter sido formulado há décadas, o conceito de Sociedade do Espetáculo permanece pulsante na análise da sociedade contemporânea — especialmente agora, quando os parlamentares, tanto nas câmaras estaduais quanto no Congresso Nacional, encenam diariamente farsas políticas em redes sociais, usando números distorcidos, narrativas forjadas e indignações ensaiadas para manipular massas e ampliar capital político. O espetáculo não apenas substituiu a política: tornou-se a política. Deputados gritam, choram, mentem e performam, como se estivessem em um reality show cujo único critério de vitória é o engajamento. A verdade é moldável, o discurso é marketing, e o povo, expectador cativo e cúmplice.

E eu, pobre mortal enredado nesse teatro de horrores, reconheço — talvez tarde demais — que já não sei onde termina o espetáculo e começa a vida. Talvez eu entenda, sim. Talvez até veja com clareza a engrenagem girando, cuspindo mentiras embaladas em discursos inflamados e números moldados à conveniência do poder. Mas de que serve a lucidez quando se está afundado até o pescoço num pântano de ideologias endurecidas? Estamos todos enlatados, rotulados, empilhados em prateleiras de certezas fabricadas. A indignação virou performance, e a resistência, consumo. E mesmo quando gritamos, gritamos dentro da caixa — decorando falas alheias, torcendo por heróis de papel. Vivemos indignados, mas domesticados. Espetadores e figurantes do mesmo ato infame, onde até a revolta é dirigida.E eu, só um fragmento nesse espetáculo delirante de enredos impostos — carregando a sombra da dúvida: o que ainda permanece de mim, ou o que resta do que um dia fui?



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