
O Herói que Me Contaram, o Homem que Descobri
Desde pequeno, cresci vendo aquela imagem solene de um homem barbudo, cabelos longos, olhar sereno, quase sagrado. Nos livros escolares, nas datas cívicas, nos discursos sobre patriotismo, lá estava ele: Tiradentes, o mártir da liberdade, o grande herói nacional. Por muito tempo, acreditei naquela figura como verdade absoluta — um símbolo de coragem e sacrifício, alguém acima do comum. Mas ao longo da vida, fui descobrindo que aquela imagem não era apenas uma homenagem; era, na verdade, uma construção política.

Joaquim José da Silva Xavier, o verdadeiro nome de Tiradentes, foi um homem simples do século XVIII. Era dentista prático, militar, tropeiro, minerador — e carregava um forte senso de justiça diante da exploração da Coroa portuguesa sobre o povo mineiro. Participou da Inconfidência Mineira, um movimento inspirado pelos ideais iluministas de liberdade e autodeterminação. Mas diferente do que muitos pensam, aquele levante não foi um grito coletivo e popular por igualdade: boa parte dos envolvidos era composta por membros da elite local, preocupados com suas dívidas e interesses próprios. Tiradentes acabou sendo o mais exposto, talvez o mais idealista entre eles — e pagou sozinho o preço da rebeldia.
Ele foi enforcado e esquartejado em praça pública, no dia 21 de abril de 1792, como exemplo e ameaça a qualquer um que ousasse confrontar o poder. Durante o Império, foi tratado como traidor. Mas aí veio a Proclamação da República em 1889, e com ela, uma necessidade: os novos governantes precisavam de símbolos, de mitos fundadores, de heróis que legitimassem a ruptura com a monarquia. E foi então que renasceu o mito de Tiradentes.
Essa reconstrução não foi por acaso. A imagem que conhecemos hoje foi produzida artisticamente, especialmente por nomes como Décio Villares, que deliberadamente o retratou com feições semelhantes às de Jesus Cristo: barba longa, semblante manso, corpo magro e luz espiritualizada. Não há nenhum retrato real de Tiradentes em vida. Toda essa iconografia foi criada mais de cem anos após sua morte, com o objetivo de transformá-lo em um “Cristo da República”, um mártir laico que morreu pelo povo — ainda que, na realidade, esse povo sequer tivesse participado do movimento inconfidente.



Os historiadores contemporâneos têm sido fundamentais para desmontar esse mito e revelar o homem por trás da lenda. Tiradentes não foi um líder militar brilhante nem um revolucionário popular — mas foi um homem que ousou sonhar e agir contra a opressão, mesmo sem apoio ou estrutura. Foi usado politicamente tanto pela monarquia, que o executou como exemplo, quanto pela República, que o ressuscitou como herói para unificar uma identidade nacional em torno de valores republicanos.
Hoje, compreendo que a história é cheia de versões, de silêncios e de intenções. Tiradentes foi um personagem real, com ideais, medos, limitações. Seu sacrifício merece respeito, mas sua imagem foi manipulada e moldada para servir ao poder. E isso me ensina que devemos olhar para o passado com olhos críticos, conscientes de que muitas vezes o que nos contam é mais invenção do que lembrança.
Não deixo de admirar a figura de Tiradentes — mas admiro ainda mais o homem comum que ele foi, não o herói inventado que me apresentaram. Porque é nesse homem imperfeito, real e sonhador que eu enxergo a força verdadeira de quem luta por um país melhor. E é essa verdade que me inspira.